Decodificar letras, símbolos e significados transformou o nosso cérebro e nossa sociedade, e criou algo que não existia quando a nossa espécie surgiu.
“Nós pensamos na linguagem como algo natural, e deduzimos que a língua escrita é algo natural também. Mas não é, nem um pouco”, afirma Maryanne Wolf, cientista cognitiva, professora da Universidade da Califórnia em Los Angeles e autora de O Cérebro Leitor (editora Contexto).
“E quanto mais você lê, mais esse sistema molda o cérebro, de modo cumulativo. Dá a ele todo um conhecimento, toda uma construção de processos que eu chamo de leitura profunda.”
No entanto, Wolf adverte que essa habilidade de leitura profunda está sob risco, por causa dos hábitos digitais modernos – como apenas “passar os olhos” em textos online.
A seguir, explicamos quatro formas como a leitura alterou a forma como pensamos – e como preservar essas conquistas.
1 – A ‘invenção’ da leitura
Maryanne Wolf explica que um cérebro neurotípico já nasce com os circuitos que permitem que nossos olhos enxerguem e que as nossas cordas vocais produzam os sons da fala. Mas ele não nasce com um circuito que permita ler.
Esse processo provavelmente começou por volta do ano 3300 a.C., com o povo sumério, na Mesopotâmia, onde hoje fica o Iraque. Os sumérios criaram o sistema cuneiforme, de cunhar símbolos em argila – embora haja debates entre alguns cientistas que os precursores da escrita possam ter sido os egípcios, com seus hieróglifos.
De qualquer modo, decifrar símbolos passou a exigir mais do cérebro do que apenas enxergar. Era preciso associar aquele símbolo a algum objeto, conceito ou emoção, e também a algum som.
“Os símbolos de escrita começaram a surgir mais ou menos 6 mil anos atrás. E exigiram uma mudança no cérebro, em que um símbolo visual passou a representar um conceito e ser expressado por linguagem”, diz a autora.
Em seu livro, Wolf explica que os cientistas acreditam que os nossos ancestrais “reciclaram” para a leitura circuitos antes usados para o reconhecimento de objetos.
2 – O idioma que aprendemos impacta áreas diferentes do cérebro
Outra observação de Wolf é de que diferentes idiomas podem impactar o cérebro de modo distinto.
Vejamos o caso do chinês, um dos idiomas mais antigos do mundo, escrito no chamado sistema logográfico. Cada ideia ou preposição, por exemplo, é representada por um símbolo, em vez de por um conjunto de letras do alfabeto.
Pesquisas indicam que o aprendizado de sistemas logográficos ativa áreas diferentes do cérebro do que o aprendizado de português ou inglês, por exemplo. Em particular as regiões envolvidas na memória visual e associação visual.
Uma das formas como os cientistas descobriram isso foi a partir de um estudo pioneiro sobre o bilinguismo na década de 1930. Nele, pesquisadores chineses estudaram o caso de um homem que sofrera um derrame cerebral grave. No entanto, o derrame impactou apenas a capacidade do paciente de ler chinês. O conhecimento do idioma inglês continuou intacto.
“É um exemplo de como os circuitos do cérebro refletem as demandas do idioma chinês, que exige mais memória visual e mais processamento visual daqueles belos e intrincados símbolos”, afirma Maryanne Wolf.
3 – Repertório desde a primeira infância
Inclusive, esse aprendizado tão sofisticado começa antes da alfabetização formal: já quando os bebês ouvem história no colo dos adultos ou veem livros com figuras – mesmo que ainda não consigam decifrar as letras.
Para Wolf, isso já cria o terreno para a criança desenvolver habilidades emocionais importantes, como a empatia e a capacidade de se colocar no lugar de um personagem da história.
Em contrapartida, a negligência à leitura tem um efeito contrário – e bastante prejudicial – ao cérebro infantil.
Um famoso estudo americano de 1995 concluiu que crianças de lares pobres, sem acesso à leitura e a estímulos, terão escutado, até os 3 anos de idade, 30 milhões de palavras a menos do que uma criança estimulada e de classe média.
4 – Capacidade de leitura profunda se perdendo
Uma grande preocupação da pesquisadora é com o que ela chama de “crise de leitura”.
O fato de que ler não é uma capacidade inata dos humanos, e sim algo adquirido e aperfeiçoado ao longo de milênios, significa, segundo Wolf, que essas habilidades podem ser atrofiadas ou lentamente perdidas.
Pensa em como você lê na tela do celular. Por acaso é uma passada de olhos, fazendo scroll na tela, e interrompendo a cada notificação do WhatsApp? Isso é cada vez mais comum.
O problema, segundo Wolf, é que se limitar a essa leitura superficial pode prejudicar nossa capacidade de imersão num texto, de entender argumentos complexos, de fazer uma análise crítica, de identificar notícias falsas ou, simplesmente, de mergulhar em um livro bem escrito.
“Quando você apenas passa o olho no texto, estudos mostram que você absorve apenas uma amostra do que está escrito”, diz ela. “E você não perde apenas dados ou fatos absolutos, mas também todo o propósito do que o escritor está tentando instigar – que é a beleza da linguagem.”
Wolf cita pesquisas acadêmicas indicando, por exemplo, que crianças que usam o celular desde os primeiros anos de vida podem ter um desempenho pior na escola depois.
Além disso, “num cérebro que é constantemente distraído e hiper-estimulado, os neurotransmissores começam a desejar estímulos em um intervalo cada vez mais curto. Daí é comum que essas crianças, quando estão off-line, se sintam muito entediadas.”
